Um dia de Kung Fu
O meu primeiro dia na comitiva começou do outro lado da Flórida, 2 da manhã, quando decidi chamar o Uber de casa para o ponto de ônibus de viagem. Estava virada desde as 3 da manhã do dia anterior, mais preocupada que de fato ocupada com trabalhos que precisava entregar para a faculdade. Me questionava: será que devo ir? Estou cansada e não acredito que minha presença trará qualquer vantagem para a família kung fu. Logo cheguei à conclusão que jamais saberia a resposta se não fosse.
Chegando ao ponto de ônibus me vi em uma situação que muito temo: sozinha, à noite e cercada por homens desconhecidos. Saí do Uber tensa, o cansaço esquecido agora que eu me encontrava em um cenário desconfortável. Lembrei-me, porém, que, apesar da distância, eu não de fato estava só: a pouco mais de 300 km, meu Si Fu, Si Mo e irmãos kung fu me esperavam. Enviei uma mensagem para meu Si Hing Thiago Silva com minha localização. Apesar da minha situação continuar exatamente a mesma, o conforto de saber que sabiam onde eu estava me trouxe calma. A mudança foi de ponto de vista e pude assim melhorar minha atenção diminuindo minha tensão.
Cheguei no condado de Sarasota despreparada. A falta de conexão com a comitiva era gritante: não sabia onde o Si Fu estava ou para onde eu deveria ir. Fui então à casa do Si Fu, a sede de nosso clã, e de lá fui buscada pelos meus irmãos kung fu Thiago Silva e Carlos Antunes para que por fim pudesse estar com a comitiva.
Juntos buscamos o Si Fu no cabeleireiro, seguindo para o café da manhã surpresa de seu aniversário. A maneira que Si Fu e Si Mo abrem a casa para nós, membros vitalícios da família, é sempre emocionante: somos convidados a sua mesa farta com todo o carinho e zelo. Dona Vera, nossa Si Taai, estava presente, o que sempre me traz alegria.
Após o café, fomos até um píer para uma prática rápida. Por atualmente não ter acesso aos meus irmãos, todo instante de prática me é mais valioso que o normal, já que são raros. É na prática que checo meu estado pessoal, como se encontra minha capacidade de conexão humana, até mesmo minha sanidade física. Para minha surpresa, dentro da minha análise pessoal, eu estava bem melhor do que esperava estar. Fui advertida pelo Si Fu sobre minha atitude em relação a minha atual condição de vida (sozinha, em um país estrangeiro) e como esta afetava meu ponto de vista.
Voltamos para a casa de nosso Si Fu e as mais de 36 horas acordada começaram a de fato me afetar. Enquanto meus irmãos kung fu colocavam as cortinas nos quartos da casa, sentei-me com nossa Si Taai para um café, sentindo-me novamente deslocada da comitiva. A cafeína me deu a energia necessária para aspirar o chão e bancos do carro do Si Fu, tirando do colo dos meus irmãos kung fu ao menos esta pequena tarefa.
Chegou então o momento de nossa participação na cerimônia que ocorria em Ipanema. Trouxe-me muita alegria ver o núcleo que montei com meus irmãos kung fu repleto de membros da família: de todas as coisas que construí em minhas poucas décadas de vida, o núcleo Ipanema é certamente a que mais me orgulha. Fui convidada a falar sobre a comitiva que eu estava participando há cerca de 7 horas, e meu cérebro deu branco. Disse então o que me vinha à cabeça, checando com meu Si Fu e irmãos kung fu para confirmação de que o que eu dizia fazia sentindo. A falta de conexão já não era tão gritante assim.
Deste momento partimos ao jantar de comemoração do aniversário do Si Fu. Foi um momento alegre e descontraído que me fez novamente perceber o quão emocionante é a maneira que o Si Fu se abre para nós: lá estávamos juntos de sua família consanguínea, esposa e amigos. As conexões humanas sinceras e genuínas que o Si Fu proporciona me fizeram perceber o quanto o kung fu afeta todos os momentos da minha vida, já que me esforço constantemente para desenvolver em minhas relações a mesma qualidade de zelo e genuinidade que o Si Fu mostra ser possível e alcançável.
Na volta para a casa, tive um sono sem sonhos. Acordei mais tarde do que gostaria, às 6:40, podendo aproveitar pouco os minutos restantes que tinha com meus irmãos kung fu. Caminhamos até a caixa de cartas, a cerca de 10 minutos da casa e tomamos um rápido café da manhã antes de partir para pegar meu ônibus de volta para casa, onde agora termino meu diário. A viagem de volta de ônibus já não me parece tão longa e cansativa como a de vinda. Ao olhar pelo ângulo errado, transformamos em leão de Nemeia muito gatinho de estimação.
Despeço-me desta comitiva na esperança da próxima.
–
Maria Alice Teixeira
Moy Wa Lei Si
梅 華 利 ⼠